Por: Jornal Creator
A Maldição dos Recursos Naturais em Moçambique?
Em pleno século XXI, Moçambique continua a ser um exemplo paradigmático do paradoxo da abundância: um país rico em recursos naturais, mas onde a pobreza, desigualdade e subdesenvolvimento persistem. A recente denúncia do governador de Inhambane, Francisco Pagula, sobre a injustiça fiscal praticada no modelo de redistribuição de receitas provenientes da exploração de gás natural pela multinacional Sasol reacende um debate antigo e incômodo: a quem serve a riqueza de Moçambique?
Inhambane, com suas praias idílicas e vastas reservas de gás, tornou-se um epicentro de exploração energética desde 2004. Contudo, para as comunidades locais, o prometido "progresso" chegou sob a forma de poeira, estradas esburacadas e promessas adiadas. Enquanto os milhões fluem para os cofres do Estado, o desenvolvimento local permanece simbólico, limitado a pequenos trechos de estrada ou centros de saúde isolados.
REDISTRIBUIÇÃO FISCAL: UM MODELO QUE SERVE A QUEM?
Em 2024, a Sasol pagou ao Estado moçambicano cerca de 124,9 milhões de dólares em impostos, dos quais apenas 1,8 milhões foram canalizados diretamente para Inhambane — 1,4% do total. A regra que define que apenas 10% do Imposto de Produção seja transferido à província geradora do recurso tem sido criticada como economicamente míope e politicamente injusta.
A crítica de Pagula é direta e pertinente: por que não considerar todos os impostos pagos pela empresa na fórmula de redistribuição? Afinal, os impactos sociais, ambientais e económicos da exploração são sentidos integralmente pelas comunidades locais.
HISTÓRICO: CASOS ANÁLOGOS EM MOÇAMBIQUE
O caso de Inhambane não é isolado. Em Tete, por exemplo, onde empresas como a Vale operaram durante mais de uma década na exploração de carvão, as comunidades vizinhas continuam a viver sem acesso adequado a serviços básicos. Apesar das promessas de desenvolvimento, os distritos de Moatize e Changara viram pouca melhoria nos seus indicadores sociais, mesmo com a geração de bilhões em receitas fiscais.
Em Cabo Delgado, a exploração de gás natural offshore liderada por consórcios internacionais também levantou questões sobre a distribuição equitativa da riqueza. O início dos projetos coincidiu com um aumento da instabilidade social, que culminou numa insurgência violenta — um lembrete de que a marginalização de comunidades pode gerar consequências profundas e duradouras.
O PAPEL DO GOVERNO CENTRAL E A POLÍTICA DE RECENTRALIZAÇÃO
Por trás deste modelo está uma lógica centralista do Estado moçambicano, que prefere controlar a receita nacional a partir da capital, Maputo. A autonomia provincial e distrital, embora consagrada na lei, continua severamente limitada na prática. A redistribuição de apenas uma pequena fatia da produção bruta é reflexo dessa arquitetura de poder, que se mantém inalterada desde os tempos coloniais e do monopartidarismo.
Vale lembrar que a Constituição de Moçambique reconhece o direito das comunidades locais ao usufruto justo dos recursos naturais existentes nas suas terras. Porém, sem mecanismos práticos, esse direito permanece letra morta.
IMPACTOS LOCAIS: DESENVOLVIMENTO OU ILUSÃO?
Segundo dados da própria província, os 65 milhões de meticais transferidos em 2024 foram usados para construir menos de 3 km de estrada e um centro de saúde. Nos distritos de Inhassoro e Govuro, que convivem diretamente com a exploração, os valores recebidos em 2024 — cerca de 8 milhões de meticais cada — mal chegam para obras simbólicas. O governador mencionou a pavimentação de apenas 200 metros de estrada em Inhassoro como um exemplo claro do descompasso entre expectativa e realidade.
TRANSPARÊNCIA E PRESTAÇÃO DE CONTAS: ONDE ESTÃO OS RELATÓRIOS?
Outra camada deste problema reside na falta de transparência. Pouco se sabe sobre os critérios utilizados para definir os investimentos locais com os fundos transferidos. Os relatórios públicos sobre os usos dos 10% são escassos, técnicos e frequentemente inacessíveis às comunidades.
Se o modelo de redistribuição é injusto, sua gestão também é frequentemente opaca. Isso levanta sérias preocupações sobre corrupção, má gestão e uso político dos fundos.
COMPARAÇÕES REGIONAIS: O QUE MOÇAMBIQUE PODE APRENDER?
Países como Gana e Noruega criaram fundos soberanos e modelos de redistribuição descentralizados, com forte participação das comunidades locais na definição de prioridades. No Níger, onde há extração de urânio, os municípios produtores recebem uma porcentagem dos royalties, com obrigações legais de investimento em saúde e educação.
Moçambique poderia — e deveria — seguir caminhos semelhantes. Mas para isso, é necessário romper com o ciclo histórico de centralismo autoritário, dependência externa e negligência local.
CONCLUSÃO: Uma Riqueza Que Ainda Não Se Vê
A denúncia do governador Francisco Pagula é mais do que um desabafo político: é um alerta. Se o modelo de redistribuição fiscal não for urgentemente revisto, Moçambique corre o risco de perpetuar a lógica extrativista colonial, onde os recursos saem por mar e a miséria permanece em terra.
Enquanto isso, estradas continuam por pavimentar, escolas sem professores, centros de saúde sem medicamentos — e promessas sem cumprimento. A riqueza de Inhambane está a enriquecer Maputo e acionistas estrangeiros, mas não os moçambicanos que vivem sobre ela.
Sugestões de Caminho:
1. Revisão legal do modelo de redistribuição, ampliando a base de cálculo para incluir todos os impostos pagos pelas empresas extrativas.
2. Criação de um Fundo Provincial de Desenvolvimento Local, com gestão participativa.
3. Transparência e publicação obrigatória dos relatórios de uso dos fundos em plataformas acessíveis ao público.
4. Capacitação das autoridades locais para gerir recursos de forma eficiente e responsável.
Francisco Pagula iniciou um debate que o país não pode ignorar. A pergunta agora é: haverá coragem política para transformar essa crítica em ação concreta?
VÍDEOS VULGARES DA SEMANA:
Categoria:
OPINIÃO | CRÍTICA POLÍTICA